Texto publicado originalmente em www.escaparfedendo.blogspot.com
Mas a consideração da forma conduz imediatamente à outra, essa sim o verdadeiro pano de fundo sobre o qual se desenrola a polêmica, ou seja, a posição ideológica que ocupam os dois artistas. Em certo sentido, a diferença de postura de Chico e Caetano marca duas opções distintas da elite popular universitária, que na época da Bossa Nova deixa de considerar a arte popular como um tipo inferior de manifestação cultural, e passa ela mesma a eleger seus representantes mais legítimos.
A Bossa, com sua mistura original de samba e jazz, promoveu a higienização necessária que tornou possível transformar o samba em produto de exportação e, como tal, digno de ser apreciado por um público mais “refinado” (definição de classe, mas que de gosto). Entretanto, a Bossa apresenta o mesmo problema que o jazz a partir do bep-bop, que seja: é de muito bom gosto afirmar que acha excelente, mas daí a entender de fato é outra história. É tão complexo compreender a dimensão da transformação que a batida de violão de João Gilberto representou para a música nacional quanto entender de fato o que Charlie Parker fez pelo jazz. Sabe-se que tudo mudou, mas daí a entender e explicar é outra história, sendo necessário não apenas um conhecimento musical mais aprofundado, mas também de cultura e do processo histórico-social. Isso sem falar que a Bossa é radicalmente avessa a entrar em debates políticos e ideológicos e, portanto, a adesão a ela é dada forçosamente em termos musicais, a menos que se opte por uma opção declaradamente “alienada”, o que para essa parte da elite universitária é pecado grave, especialmente na época de acirramento do debate político no período da ditadura, que exigia um tipo de arte mais engajada, ou explicitamente ancorado no social. Para suprir essa necessidade, surge a música de protesto. É certo que Chico Buarque não surgiu já fazendo letras engajadas e atacando o regime político, mas um dos debates da época era entre o que seria o genuinamente nacional e o que era estrangeiro e alienante, a que a música de protesto veio responder procurando fazer uma música de temática mais regional ou mais voltada para o samba (o show opinião é emblemático nesse sentido por trazer representante das três vertentes, o regionalismo de João do Vale, o sambão do morro de Zé Keti e a nova musica universitária, via Nara Leão). Nesse contexto, Chico optou por um retorno ao que seria o autêntico samba, aos moldes de Noel Rosa. Logo se tornou o símbolo maior do que era a MPB no início, que seja, música nacional genuína de qualidade, sendo que o adjetivo final indica a separação dessa música com a que de fato se fazia no morro.
Já no período mais duro da ditadura, Chico fez sua opção, via esquerda, se tornando o exemplo acabado de compositor combativo e ao mesmo tempo refinado (o que é muito importante por marcar a diferença entre ele e outros, como Vandré). Alias, o mais belo exemplo que se poderia imaginar, sendo rico, bonito pra porra, de família influente, que em certo sentido “renega” os benefícios de sua posição para lutar em pró de um bem comum (quase um Che Guevara de Walter Salles), não só de sua classe, mas também dos pobres – a ilusão de um possível conciliação entre as classes foi comum a toda esquerda nesse período, até o AI5 abortar de vez o projeto. O próprio movimento de apropriação das elites da cultura popular já inevitavelmente manifesta esse caráter de aproximação de classe. O projeto da MPB que o Chico representa é em certo nível o de criar uma forma popular de composição, mas que escape ao mau gosto e a reificação da cultura de massas. Uma música popular esclarecida, por assim dizer, que no limite conduz a um afastamento dos pobres da forma por eles mesmos criados, como no samba enredo “vai passar” que é muito bom, mas que ao mesmo tempo é o que de mais distante poderia haver de um samba enredo. O que seria uma aproximação de classes – os membros da elite que passam a se identificar com as classes populares – se torna uma nova forma de imposição, pois são esses que acabam definindo a partir de fora o que é ou não mais genuíno e autêntico. A figura do malandro exaltada por Chico em suas letras, já era bem raro mesmo nos morros cariocas, assim como os pobres de fato estavam em grande parte mais interessados na novidade representada por Roberto Carlos, em boleros e em musica brega, (Maysa, Agnaldo Timóteo e Rayol, Odair José, esses sim os grandes vendedores de disco da época) do que em samba canção aos moldes de Noel. O popular evocado por Chico e, principalmente, por seus seguidores, é já uma concepção higienizada que afasta o mau cheiro que inevitavelmente exala a pobreza. O que não diz nada sobre a qualidade dessa obra, excelente, mas revela muito sobre seu radicalismo e posição histórica, revelando muito mais que sua qualidade estética (existem dezenas de outros autores tão ou mais geniais) as razões de sua unanimidade. O que comprova que nem sempre a opção mais à esquerda é de fato a mais contestadora.
Por sua vez a obra de Caetano realiza o movimento quase oposto, e ao invés de definir o que seria uma música popular de qualidade, procura no interior da cultura de massa os exemplos já existentes de musica de qualidade. Ao invés de procurar inserir certo padrão importado de outras formas de arte, como o conceito de obra de arte orgânica, que recupera a noção de autor, adota o pressuposto concretista (que faz mais sentido para musica popular que para a poesia, a propósito) de que a arte é já mercadoria, e que este dado a priori interfere na constituição, mas não necessariamente na qualidade das obras como quer certa crítica mais radical da industria cultural. A canção popular, assim como o cinema, toma forma com o desenvolvimento da industria fonográfica, e isso naturalmente não é um atestado da falência de sua capacidade crítica ou estética, como não poderiam compreender aqueles que nasceram em países em que a arte pós industrial representou o desaparecimento de um determinado tipo de sujeito criador. Caetano procura qualidade artística naquilo que efetivamente a cultura popular está produzindo, seja Roberto Carlos, Vicente Celestino, Odair José, Beatles, Michael Jackson, Peninha ou Fernando Mendes, porque para Caetano também não existe essa distinção entre nacional genuíno e estrangeiro. A arte popular é industrial, e como tal, rompe as fronteiras territoriais, e a MPB deve sua existência tanto à João Gilberto quanto aos Beatles, na mesma proporção. Ao realizar esse movimento, ele procura romper com o preconceito que direciona a audição da classe média, e que fica explicito quando essa classe taxa uma música de Peninha como brega e a rejeita, só para aplaudir a mesma música quando gravada por Caetano. Por estar menos a esquerda que Chico, seu procedimento estético é mais radical. É anárquico. Seu real interesse é o mundo agora, e não uma utopia sustentada por um mito, mito que a própria postura pessoal de Chico ajuda a sustentar, ao escolher se esconder da opinião pública. Caetano não existe fora do espaço de debate e polêmica. Fora do mundo de agora, ele perde o sentido, pois sua função é desestabilizar o coerente.
Alias a MPB deve sua existência basicamente a dois movimentos: a depuração da Bossa Nova e a abertura da Tropicália, cujo mentor intelectual é Caetano – por mais que não tenha sido de fato ele que tenha organizado o movimento, foi sem duvida o que levou o conceito mais longe, e o sistematizou. Pois até a Tropicália, contando inclusive com a canção de protesto e Chico, o que nós temos é uma variação do projeto da Bossa Nova de depuração da canção nacional, um projeto definidor por excelência. Com Cae e Cia é que MPB ganha esse caráter de forma inorgânica, definida mais como um jeito de se fazer a coisa do que a coisa propriamente dita. Por isso eu também acredito que Caetano Veloso é a figura mais importante (inclusive em termos simbólicos) da MPB, e um dos principais nomes da canção brasileira moderna em geral (juntamente com Gilberto Gil e Jorge Ben). Do mesmo modo que Chico Buarque é seu maior símbolo, o que ajuda a entender o porque da MPB vir gradativamente deixando de existir enquanto gênero.
Chico é o exemplo mais bem acabado da família dos compositores artesãos. É o mais completo, embora não seja tão importante quanto João Gilberto ou Tom Jobim. Em todo caso, é inegável que Chico Buarque é muito bom. Entretanto, Caetano Veloso é brilhante e acima deles, talvez, somente os gênios como Gilberto Gil. Mas aí já é outra história.
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