quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Malandrismus

Wolfgang Fritz Haug – autor de Crítica da Estética da Mercadoria (1971, tradução publicada pela Ed. Unesp em 1997) – dirige o projeto do Dicionário Histórico-crítico do Marxismo, que vem sendo publicado (em alemão) desde 1994 e atualmente está no volume 7 (o dicionário completo terá 15 volumes). Há informações sobre o dicionário no site do Institut für kritische Theorie.
A curiosidade é que o volume 8 (que abrange verbetes de “Kritik” a “Maschinerie”, e cuja publicação está prevista para 2011) incluirá uma colaboração de Roberto Schwarz, com o verbete “Malandrismus”, obviamente um neologismo, uma “costela de prata” [1] introduzida no corpo doente da língua de Goethe para traduzir malandragem (por sinal, a tradução inglesa da “Dialética da malandragem”, feita pelo sociólogo Howard Becker, também havia optado por um neologismo: “malandroism”).
Claro, não foi o neologismo que me chamou a atenção, mas o fato de que a contribuição brasileira para um dicionário como esse seja justamente a malandragem. É verdade que Roberto não é o único brasileiro presente na obra: haverá um verbete de Isabel Loureiro sobre o MST (e haverá também colaborações do “brasileiro” Michael Löwy, sobre “kafkiano”, “sociedade sem classes” e “lukacsianismo”; mas, como é evidente, nesses temas a cargo de Löwy não há nada referente ao Brasil). A inclusão do MST é perfeitamente compreensível, dada a importância do movimento, que se tornou referência em plano mundial, mas um verbete sobre malandragem em um dicionário internacional de Marxismo não deixa de surpreender.
Como é o Roberto que vai escrever, desconfio que a sugestão do verbete tenha partido dele mesmo. Chego até a imaginar: alguém pede ao Roberto que colabore no dicionário (há verbetes como “estética”, “crítica literária”, “teoria crítica”, “indústria cultural” etc.), e ele, depois de pensar bem, propõe: malandragem. E já que estou divagando, não custa acrescentar que um verbete sobre malandragem em um dicionário de Marxismo seria, muito provavelmente, impensável há vinte anos.
Mas, olhando melhor (depois do susto), faz sentido: aquilo que, antes da queda, talvez parecesse um disparate mostra-se agora não só plausível, como também (arrisco dizer) indispensável. Estamos então testemunhando algo como a elevação da malandragem ao estatuto de conceito marxista – e por isso mesmo, aliás, o neologismo se impõe: não se trata da designação genérica um traço moral, para o qual se poderiam encontrar equivalentes em outras línguas, mas de uma elaboração conceitual, fundamentada histórica e socialmente.
Contra a ideia tradicional de uma colaboração apenas positiva da cultura brasileira no concerto das nações, que supõe uma harmonia inexistente, Roberto sempre insistiu que uma contribuição brasileira de peso seria antes o nosso museu de horrores, entendido historicamente como resultado da expansão moderna do capitalismo mundial.
A malandragem não é apenas uma representação ideológica de traços culturais do povo brasileiro. É uma manifestação da nossa informalidade no trato com a norma da civilização ocidental moderna. Seu fundamento último está na particularidade da formação historicossocial. Se a malandragem persiste como um comportamento dominante, a ponto de parecer uma constante cultural do caráter brasileiro ou coisa que o valha, é porque a fratura social persiste – perpetua-se a falta de integração dos pobres, agora agravada pela derrocada do mundo do trabalho. A informalidade ligada ao substrato pré-burguês, no seu contraste mesmo com a norma, esteve na base dos momentos fortes da cultura brasileira, momentos nos quais se cristalizava a simbiose de crítica e regressão. É isto, aliás, e não a analogia da representação do caráter ou da falta de caráter do brasileiro, que liga o Sargento de Milícias a Macunaíma.
Não é difícil identificar alguns referenciais históricos para situar o interesse internacional pelo tema da malandragem. Paulo Arantes já deu notícia da tese da brasilianização do mundo, tanto na versão apologética quanto na versão crítica, e sem dúvida é a esse fenômeno que se associa o interesse que a malandragem pode ter na atualidade. Sem entrar no detalhe da questão – trocada em miúdos no ensaio “A fratura brasileira do mundo”, de Arantes, e complementada por “O ornitorrinco” de Francisco de Oliveira –, o que está em causa (entre outras coisas) é a desregulação em todos os níveis, ligada à derrocada do mundo do trabalho no novo estágio do capitalismo, dito flexível.
Nas palavras de Arantes: “A alegada contaminação legitimadora da acumulação flexível pela fluidez da boa alternância brasileira de ordem e desordem, vanguarda produtiva e retaguarda social, veio de fato estilizar a convergência entre duas modernizações abortadas, ou consumadas, tanto faz, confluência entre o desaburguesamento das elites globais e o ‘mundo sem culpa’ plasmado na outrora promissora quase-anomia periférica.” // “A consumada modernidade flexível, então, é isso que se está vendo no velho laboratório brasileiro da mundialização: esse entra e sai na esfera peculiar dos mais diversos ilegalismos, tanto no plano da mera viração dos despossuídos, quanto no âmbito da alta transgressão que distingue os pilares da sociedade nacional.” (Zero à Esquerda)

P.S. Em vez de transcrever os trechos de Arantes, eu pretendia dizer algo a partir do Wallerstein, sobre o fim do Liberalismo ligado ao colapso do bloco "socialista", com o intuito de indicar nossa entrada no atual estado de emergência, mas fiquei com preguiça. Quem quiser que leia Após o Liberalismo (Ed. Vozes) e o ensaio "The agonies of Liberalism" (New Left Review, 204, 1994).
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[1] Só para constar: a expressão "costela de prata" é de W. Benjamin, usada a propósito do estrangeirismo; foi retomada por Adorno e, mais tarde, por A. Rosenfeld, no ensaio sobre Augusto dos Anjos, para referir-se ao uso de termos científicos.

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