texto publicado originalmente no blog mesmopoemas.blogspot.com
Tom Zé não é, stricto sensu, um tropicalista. Figura conhecida do cenário cultural soteropolitano da década de 60 por sua capacidade de transformar a canção em uma espécie de "crônica" — nunca memorialista nem romântica, mas zombeteira —, sua presença no movimento tropicalista deu-se pelas mãos de Caetano Veloso, procurando aquela justaposição do arcaico/moderno tão comentada por diversos críticos. O relato divertidíssimo que Caetano apresenta em Verdade tropical (1997) sobre a viagem de Tom Zé a São Paulo pretende exemplificar o que o escritor admirava no franzino sertanejo conhecedor de música erudita. Estavam ambos, Tom e Caetano, voando em uma aeronava da Caravelle — avião francês da época — quando a comissária perguntou-lhes o que desejavam beber. "Cachaça", disse Tom Zé sem menores volteios. A comissária embaraçada teve que explicar que cachaça não constava nas opções de bordo. "Como não tem cachaça? Mande parar esta caravela agora que eu vou descer!".
Tom Zé não deixou o caso ganhar proporções gigantescas e o vôo continuou sem mais incidentes. Este episódio, no entanto, com toda sua encenação mostra o que é Tom Zé. Uma aeronave voar em território brasileiro e não ter cachaça — hoje, com o glamour internacional a branquinha está em todos os lugares —, o absurdo de pedir para descer em pleno céu, o aportuguesamento do nome francês e o quanto este, "caravela", remete à história do Brasil, tudo participa das questões que Tom Zé encarna, e isto me interessa, também na sua criação musical.
A manutenção de traços característicos do interior baiano — não são poucas as entrevistas em que Tom Zé valoriza estes traços por ecoarem a cultura morisca, algumas complexidades da cosmogonia medieval, etc — não folclorizam sua obra. Servem-lhe apenas de contrapeso: conhecedor de filosofia, sociologia, crítica de artes, as próprias artes eruditas e a cultura pop do centro erradiador — leia-se Europa e EUA —, Tom Zé constrói desde sua estréia em 1968 o contrafluxo desta erradiação que, de repente, surpreende-se com a qualidade muitas vezes superior daquilo que subjugam. Por isso a valorização da Bossa Nova — "que o povinho audacioso, que povo civilizado!" —, do baião — "seu nom era Embolá/ no falar da gen"— e do funk carioca — "Tô ficando atoladinha" como um meta-refrão microtonal pluri-semiótico — e os maus olhos contra o "rock traduzido" de algumas bandas — "desentoxique-se deste apocalipse".
Sua discussão com o técnico de som suíço no festival de Montreuax presente no documentário Fabricando Tom Zé (2007) serve de encenação deste contrafluxo para fora dos limites da canção:
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O mais arcaico dos artistas integrantes da Tropicália e também o mais moderno: a transformação que Tom Zé operava na canção, desde meados dos anos de 1960, não era apenas temática ou mesmo estilística. Seguindo as lições enxutas da Bossa Nova, a pesquisa de Tom Zé quer a canção em seu cerne procurando recriá-la sem, contudo, descaracterizá-la como canção. Processos de colagem, paródia, reutilização de frases — melódicas e das próprias letras —, orquestração erudita, instrumentos não-convencionais: o tino genial que Tom Zé possui para a composição permitiu uma obra em constante aperfoiçoamento teórico e técnico que, por motivos diversos, soou bastante estranha mesmo para ouvidos já acostumados com os avanços e abusos que a Tropicália conquistara.
Depois de seu enorme sucesso com "São São Paulo" no Festival Internacional da Canção de 1968 e da gravação decorrente deste sucesso, Tom Zé continuou sua fina pesquisa nos âmbitos da composição e do arranjo com parceiros muitas vezes desconhecidos. O segundo disco, de 1970 — um dos meus favoritos —, teve suas melhores idéias dividas com "os alunos de composição da SOFISTI-BALACOBACO (muito som e pouco papo) e com Augusto de Campos", segundo a contra-capa do vinil. Canções como "Jeitinho dela" e "Distância" remetem a composições comuns na época, seja pelos temas das letras, seja pelos vocais em coro e os metais grandiosos — todos, obviamente, aqui reconfigurados. A primeira gravação de "Senhor cidadão" deu-se pouco tempo depois, em 1971, provavelmente ainda sob o clima de criação coletiva.
Senhor cidadão - Tom Zé
compacto simples (1971)
A percussão marca um ritmo bastante regular e pontua o canto quase falado de Tom. As cordas, mais variáveis, comentam o que é cantado: são elas que dão ênfase em certos pontos da letra e organizam a chegada no refrão quando o tom sobe, aumentando a dramaticidade — ressaltada ainda pelo acompanhamento do coro de "uivos". Uma ótima versão perdida em um compacto simples nunca relançado.
A gravação em disco, aquela mais conhecida, apareceria no ano seguinte em Se o caso é chorar. O processo pelo qual o arranjo passou caracteriza o trabalho de Tom Zé: uma ótima canção, redonda e facilmente reconhecível, reconfigurada em seus pormenores o que obriga uma postura menos passiva do ouvinte.
Senhor cidadão - Tom Zé
em Se o caso é chorar (1972)
A faixa abre com a leitura de Augusto de Campos de seu famoso poema "cidadecitycité" (1963) seguida de gemidos pontuados por sintetizadores — que parecem esboçar "noite feliz" — e sinos. O canto de Tom Zé torna-se ainda mais falado e é repetido por um coro de vozes masculinas e femininas deliberadamente desencontradas. A dramaticidade, deste modo, torna-se mais contudente, o que é ressaltado pelo tom ainda mais alto que a voz feminina consegue no refrão. No fim, os instrumentos somem, as vozes também diminuem o volume — embora mantenham-se desencontradas — e o gemido inicialmente apenas esboçado surge como o único ruído.
Ainda uma canção mas mais: uma canção de Tom Zé.
Discografia
Tom Zé (1970)
Se o caso é chorar (1972)
* Este post foi sugerido por Fernanda quando, ouvindo o disco de 1970, comentou que Tom Zé era um grande cancionista — no que concordo completamente.
quarta-feira, 15 de julho de 2009
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